Em 11 de outubro de 1861, o editorial do Diário de Pernambuco, principal periódico da província, lançou a seguinte questão: “teremos nós uma história propriamente nossa, propriamente pernambucana?”. Longe de ser uma pergunta retórica, o questionamento lançado pelo jornal refletia uma inquietação característica da época. Ainda estavam presentes os ecos dos anos agitados da primeira metade do século XIX, repleta de movimentos insurrecionais em Pernambuco e em outras áreas do império. Anos em que a consolidação do jovem Estado brasileiro, emancipado politicamente de Portugal em 1822, foi lentamente conseguida, seja à maneira prussiana, seja pela conciliação. Os confrontos sacudiram várias províncias mas nenhuma delas teve um histórico de explosões contra os poderes centrais como a de Pernambuco, já desde a época do Rei Velho – D. João VI –, quando ainda os laços coloniais não haviam sido de todo rompidos.
Percebe-se, portanto, que a pergunta lançada no Diário de Pernambuco refletia efetivamente um anseio de alguns estudiosos e intelectuais locais, indivíduos que foram pioneiros nas pesquisas históricas metodologicamente influenciadas pelos moldes cientificistas propostos na Europa. O desejo de produzir uma história do ponto de vista local, ou do ponto de vista de uma província derrotada nas lutas que definiram o centralismo como modelo de organização do Estado brasileiro, aparece claramente nas declarações de intenções dos elementos mais intimamente ligados à fundação do Instituto Arqueológico em 1862.
Tentativas anteriores foram ensaiadas na então província. Em 16 de setembro de 1837, apareceu o seguinte anúncio no Diário de Pernambuco: “Uma Sociedade de Literatos Pernambucanos propõe-se a escrever a História desta heroica Província, desde o seu descobrimento até os nossos dias. A mesma Sociedade roga aos seus concidadãos que tiverem documentos, memoriais, etc., relativamente a este objeto, se dignem de os emprestar (...).” As fontes solicitadas deveriam ser entregues na loja de livros dos números 37 e 38 da Praça da Independência. Os cedentes receberiam como garantia de devolução um recibo e como recompensa um exemplar da obra, quando ela ficasse pronta.
Desde 1848, outras vozes se levantavam em apoio a um projeto com este perfil. Em 21 de agosto daquele ano, publicou-se no periódico recifense A Barca de São Pedro um artigo firmado por E.O.U.A que discorria sobre um “Projeto de uma Biblioteca Pública, Arquivo e Museu provincial, Instituto de História e Ginásio, dirigido à Assembleia Provincial de Pernambuco”. Diferentemente do que propunha o título, o artigo nada esclarecia sobre o projeto em si, resumindo-se a dar ideias gerais sobre o assunto, mais a título de justificativa da iniciativa. Ao terminar, esclarecia que “Deixamos de imprimir por ora a Proposta, porque julgamos inútil a sua publicidade; nem o tempo nem as circunstâncias são favoráveis a nosso projeto, que demanda tempo, calma e alguns meios para a sua execução. Todavia, diremos, que para levá-lo a efeito pouco ou nenhum sacrifício custaria ao tesouro provincial”.
Anos depois, em 18, 20 e 25 de fevereiro de 1860, Antônio Rangel de Torres Bandeira publicou em sua coluna “A Carteira”, no Diário de Pernambuco, dois artigos dedicados à necessidade de desenvolver os estudos sobre a história local. Apontava como o melhor caminho para isso a fundação de um Instituto provincial e afirmava que a existência de um Instituto Brasileiro não deveria servir de obstáculo e sim de exemplo. Tecia ainda considerações sobre as diretrizes gerais que deviam pautar a produção de um discurso historiográfico pernambucano. Afirmava Torres Bandeira que “o Instituto, como o concebemos, seria um passo de mais, porém, um passo seguro no progresso moral e natural da província a que pertencemos”. Em 23 de outubro de 1861, o Diário reforçava o editorial do dia 11 anterior afirmando que “não arrefecemos no empenho de dar resolução à esta ideia, que não caiu em solo ingrato, estamos certos”.
Por aquela época, dois fatos em particular tiveram profundo impacto entre a intelligentsia provincial. O primeiro deles se deu em 1859. Referimo-nos à visita do Imperador Pedro II e sua consorte a Pernambuco entre os meses de novembro e dezembro daquele ano. Movido pela curiosidade que sempre o caracterizou, o jovem monarca inquiriu sistematicamente sobre os locais, os fatos e as pessoas relacionados com a guerra contra o invasor holandês em meados do século XVII. No seu diário, Pedro II revelou-se decepcionado com a “ignorância que encontro em geral nos pernambucanos da história gloriosa de sua província nessa época”. A ácida observação resultou das frustradas tentativas do Imperador de tentar levantar com os sábios locais informações concretas sobre o período holandês.
Ao perguntar sobre a localização do Forte de São Jorge, recebeu a lacônica resposta de que devia ficar “para o lado da Tacaruna”. Em 27 de novembro, tentou sem sucesso localizar o Arraial Velho do Bom Jesus. Foi deste dia o desabafo registrado acima. Chegou a realizar pesquisas em velhos papéis de meados do século XVII que naquela altura ainda se conservavam nas repartições públicas de Pernambuco. Fez observações detalhadas sobre as fortalezas e sua artilharia, tentando sem êxito encontrar algumas das que estavam desaparecidas, tais como a já referida de São Jorge, Quebra-Pratos, Salinas, Três Pontas, Alternar e Ernesto. Mais uma vez frustrado, anotou em seu diário: “pouco sabem aqui a tal respeito e o tempo não me permitiu colher mais”. Guiando-se pelas obras produzidas no século XVII, como o Castrioto Lusitano, Pedro II excursionou pelos Montes Guararapes e foi à Vitória de Santo Antão, em busca do local da Batalha das Tabocas. O Imperador recomendou então que se criasse uma instituição aos moldes do IHGB em Pernambuco.
Um segundo fato que teve forte repercussão ocorreu menos de ano e meio depois da visita imperial. Em 5 de março de 1861, o historiador oficial da corte Francisco Adolfo Varnhagen realizou uma excursão à cidade de Olinda. Chamou-lhe a atenção o edifício do antigo Palácio dos Governadores, que havia sido reformado no governo de Chichorro da Gama para acomodar o Curso Jurídico de Olinda. O editorial do Diário de Pernambuco de 24 de abril de 1861 relatava que, nessa reforma, o engenheiro responsável ordenou a retirada de uma antiga lápide de pedra, que assinalava a importância histórica do edifício. “A lápide foi arrancada, arrojada ao chão, espedaçada e os fragmentos aplicados ao calçamento da rua”. Tratava-se da inscrição que atribuía a André Vidal de Negreiros a obra de reedificação do palácio.
Varnhagen tratou de enviar a inscrição para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Anos depois, historiando os tempos iniciais do Arqueológico, a comissão formada pelo Major José Domingues Codeceira e por Ceciliano Mamede Alves Ferreira relatava em parecer que somente depois da fundação do Instituto pernambucano a lápide foi devolvida à província. Queixavam-se de que mesmo se tratando de tão importante dado histórico, Pernambuco não havia tomado ciência de seu conteúdo, enquanto outras províncias já tinham cópias da inscrição. O editorial do Diário de 24 de abril enfatizava que era um dever dos pernambucanos reunir os fragmentos desta lápide, pois eram “relíquias preciosas que importam que não se percam”.
Meses depois, o mesmo Diário lançava a pergunta com a qual iniciamos este capítulo: “teremos nós uma história propriamente nossa, propriamente pernambucana?”. Sim, respondia o editorial, “temo-la, sem dúvida”. Faltava entretanto resgatá-la, desencavando suas fontes e questionando-as à luz da filosofia e da cultura prática e, posteriormente, divulgando-as com a maior publicidade possível. Só assim se poderia aprofundar as visões generalistas e corrigir as distorções presentes nos livros sobre a história pátria. Era necessário cultivar as tradições, pois embora elas existissem, corriam o risco de tornar-se “letra morta”, por falta de exame e pesquisa e de monumentos que as materializassem frente ao povo da província.
A solução para esta questão seria a criação na capital de uma “sociedade especial e unicamente destinada a promover o estudo das antiguidades, na parte que respeita à história da nossa Província”. O antigo periódico propõe até um nome: “Sociedade dos Antiquários de Pernambuco”. Sua missão deveria ser “investigar com critério e reflexão, nas muitas fontes da nossa particularíssima história: explorar estas várias minas de erudição e de notícias que jazem, quase em dissolução, no fundo dos cartórios, dos arquivos, das bibliotecas e, quem sabe?, nos esconderijos de alguma corporação antiga, de algumas livrarias silenciosas, pelo descuido e incúria egoística dos respectivos donos”. O apelo do jornal ia destinado ao “mundo das opiniões”, ao que chamaríamos hoje de opinião pública, na esperança de que a semente pudesse germinar e frutificar homens de senso e de verdadeiro patriotismo, pois para o editorial, “a história é para cada povo, em que ela se revela e a que pertence, uma espécie de religião e de culto público”.
Premeditado ou não, o fato é que o apelo teve eco no “mundo das opiniões” em Pernambuco e meses depois, em janeiro de 1862, surgiu a ideia da formação da sociedade proposta. No dia 7 daquele mês, circulou o seguinte convite para uma reunião na Biblioteca Provincial, instalada no Convento de Nossa do Carmo do Recife:
“Ilustríssimo Senhor – quando todas as nações polidas, ainda as mais adiantadas, não cessam de mostrar decidido empenho pela aquisição de cabedal com que enriqueçam a sua história pátria, é certamente para sentir que a província de Pernambuco, ainda na infância de sua literatura, e aliás, tão cheia de gloriosas recordações, não possua uma sociedade, que seguindo, embora de longe e modestamente, o nobre exemplo da capital do Império com o seu importante Instituto Histórico e Geográfico, se aplique desvelada e exclusivamente, já a colher e fazer perpetuar tradições que perder-se-iam com o volver dos tempos, já a pesquisar e reviver documentos ainda não vulgarizados, e já finalmente a descobrir, verificar e dar notícia de monumentos e padrões, que, servindo para lançar a luz sobre certos fatos e de notar a passada existência de outros, concorram para o desenvolvimento de uma história propriamente nossa.
Assim pensando, lembraram-se os abaixo assinados de promover a criação de uma tal sociedade, sob o nome de Arqueológica Pernambucana; e, certos de que à dedicação e patriotismo reúne V. as precisas habilitações e recursos para a realização desta ideia, tem a honra de invocar a coadjuvação de V. convidando-o para ser sócio instalador, e rogando-lhe que, no caso de anuir a isto, se digne de comparecer no salão da Biblioteca Pública Provincial, pelas 11 horas do dia 28 do corrente, escolhido para a instalação da sociedade, por ser aniversário da Restauração de Pernambuco do poder holandês, em 1654.
Somos com a maior estima e consideração de V. – atenciosamente veneradores – Joaquim Pires Machado Portela – José Soares de Azevedo – Antônio Rangel de Torres Bandeira – Antônio Vitrúvio Pinto Bandeira e Acioli Vasconcelos – Salvador Henrique de Albuquerque.”
Estava plantada a semente que originaria o Instituto Arqueológico.
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